quinta-feira, 8 de março de 2012

8 de Março

Alice Ruiz

socorro

socorro, eu não estou sentindo nada.
nem medo, nem calor, nem fogo,
não vai dar mais pra chorar
nem pra rir.

socorro, alguma alma, mesmo que penada,
me empreste suas penas.
já não sinto amor nem dor,
já não sinto nada.

socorro, alguém me dê um coração,
que esse já não bate nem apanha.
por favor, uma emoção pequena,
qualquer coisa que se sinta,
tem tantos sentimentos,
deve ter algum que sirva.

socorro, alguma rua que me dê sentido,
em qualquer cruzamento,
acostamento, encruzilhada,
socorro, eu já não sinto nada.




Astrid Cabral


Estrangeira

Varro os degraus das escadas
deste paço imperial 
circundado de colunas. 
Mas é no abstrato barro 
de outro hemisfério 
junto a raízes bem fundas 
que estão plantados meus pés.






Clarice Lispector


Dá-me a tua mão  

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.


Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio. 


  


Cora Coralina

Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…


Vive dentro de mim
a lavadeira do rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.


Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.


Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.


Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,

meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.


Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.


Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras!




Marina Tsvetáieva

Não terás minha alma viva
tradução de Aurora Bernardini

Não terás minha alma viva,
Não se dará como uma pluma.
Vida, tu rimas muito com: fingida –
O ouvido do cantor não erra uma!

Não a inventou um nativo,

Deixe que vá a outras paragens!
Vida, tu rimas muito com: ungida –
Vida: brida! Destino: desatino!

Cruéis são os anéis nos tornozelos

No osso penetra a ferrugem!
Vida: facas sobre as quais dança
Quem ama.
– Cansei de esperar a faca!



 
Orides Fontela
 Fala

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário